O encontro
 



Contos

O encontro

Maurícia Mees


A chuva torrencial silenciara durante a noite e só se ouvia o tic tac do relógio de parede e o coaxar dos sapos que se fartavam nas vertentes surgidas devido às chuvas dos últimos dias. Logo cedo, o marido de Ava, após cuidar da criação, aproveitou a estiada para ir até o vizinho, do outro lado da montanha, atrás da mata. A morada era um galpão de madeira roliça com cobertura de zinco, desprovido de parede, com exceção de um dos lados que fora fechado com pranchas de madeira. Foi para lá que o marido de Ava levou seus dois filhos pequenos e a mulher grávida.

Me encontrava na parte aberta do galpão sentada no pilão cavado em um tronco. Socava o arroz para o almoço quando ouvi ruídos de impacto vindos do lado do rio. As águas do Rio Macaco, que corriam cantantes e cristalinas no fundo dos barrancos, agora apareciam lamacentas e furiosas, trazendo troncos que destruíam toda a vegetação ao longo das margens. Pensei logo em Ava e seus três filhos, todos com menos de quatro anos. A nenê, com apenas uma semana de vida. Apesar de meus catorze anos, pensava, preciso tirar as crianças e a recém-parida daqui se a água continuar com a mesma gana que vem mostrando nos últimos minutos. Depois de conseguir vencer o barranco, a várzea vai ser tomada num piscar de olhos. Preciso avisar Ava, preciso contar com a sabedoria dela.

Quando as águas já espreitavam por sobre as margens, fui avisá-la. Sentada na beira da cama com o nenê no peito, Ava paralisou. Pelos meus olhos de medo percebeu que eu não brincava. Num salto pôs-se de pé e correu para a porta do galpão, dando de frente com a cena. O nenê pendurado em um dos braços, a teta entumecida pingando, a boca aberta e uma das mãos na cabeça. Ficamos ali analisando o avanço daquele colosso que fluía velozmente. Eu pouco sabia ainda sobre ser mulher. Não podia deixar de olhar furtivamente para aquele seio tão exposto, mas não queria encabulá-la, devia nem ter percebido, tamanho o terror.

Ouviam-se os baques dos troncos que se atropelavam quando se prendiam nos barrancos da margem do outro lado e as árvores estalavam no encontro das águas. Um morro coberto de mata secular formava o lado oposto do Rio Macaco, de nosso lado, só havia várzea, facilitando o espraiamento das águas. Logo alcançariam o galpão de pernas altas e desnudas, no sopé do morro. Um tronco poderia derrubar toda a construção e as águas levariam consigo o madeiramento e os parcos pertences daquela morada.

— Vai procurar ele — disse Ava, quando a fera lamacenta já começava a se espalhar sobre as terras da várzea. Como poderia eu deixá-la sozinha com as crianças? Não conseguiria tirar os três dali, se a enchente atingisse o galpão antes de minha volta. Talvez nem encontrasse o marido de Ava, podia não estar onde dissera, gostava de andar por aí. Na dúvida, saí correndo pela estrada ao longo da várzea e, no morro, antes de dobrar a curva atrás das capoeiras, olhei mais uma vez e só vi o líquido marrom aproximando-se do galpão. Mais alguns passos, quando dei de cara com o marido de Ava. Ofegante, com o coração a tamborear dentro do peito, mal consegui falar. Ele deu uma risadinha maliciosa como naquela manhã quando viera por trás do pilão me fazer cócegas. Andou uns passos para frente e viu. Perdeu a cor, e fraquejou, mas reagiu e correu na direção do galpão. Segui-o pensando, bem feito. Não conseguia empatizar com ele. E desde aquela manhã, passara a odiá-lo. Sempre que Ava tinha bebê, minha mãe me cedia para auxiliá-la na lida. Eu fazia tarefas que nem aprendera em casa, lavava as fraldas, pilava o arroz e até a vaca tive que ordenhar, mas daí, ter que aguentar as malícias de um marido porque a mulher estava de quarentena? De Ava sim, tinha muita pena, não merecia a vida que levava. Coitada, mas parecia resignada.

Tirei Ava dali. Saiu relutante, teve de confiar no marido para salvar seus poucos pertences. Eu, com um fedelho em cada anca e Ava carregando o bebê e uns panos e mamadeiras. Procuramos abrigo numa casa onde também encontramos homens para auxiliar o vizinho em apuros.

Quando voltamos ao galpão, depois de dois dias, a noite se aproximava. As vacas e porcos se encontravam num curral improvisado no pé do morro, logo acima. Tábuas serviam de prateleiras para afastar das águas os parcos alimentos e roupas. As águas haviam baixado, já estavam comportadas dentro das margens, mas tinham deixado suas marcas por onde passaram. Na várzea, as batatinhas estavam expostas sobre a terra, o feijão, a ponto de colher, abriram suas vagens e os grãos já brotavam. A lama reinava naquele lugar. Nos móveis, no assoalho e até no fogão à lenha. Não havia lugar onde descansar as crianças, assim, Ava e eu ficamos de pé com elas no colo. Eu não queria admitir qualidades do marido de Ava. Mas aquela provação era muito para um rapaz de vinte e três anos. Até eu reconheci, mas não admitiria. Lavou os móveis e o assoalho, baixou os colchões de palha e colocou-os nos estrados molhados. Subiu no madeiramento interno do galpão para tirar lascas da madeira seca da estrutura para o fogão que estivera imerso por dois dias. Depois de muito tentar, finalmente o fogo começou a crepitar e aos poucos as tábuas em volta lembravam madeira seca. As crianças choravam famintas sobre os colchões. O marido de Ava chapinhou na lama e conseguiu chegar até a vaca. Ordenhou-a para poder alimentar as crianças, agora três, já que o leite de Ava estava secando. Na cozinha, o leite finalmente grugulhou e pode ser servido para os pequenos. Ava, sempre criativa em tempos de escassez, tomou um punhado de farinha de milho, formou grumos que colocou no restante do leite, transformando-o na sopa para os adultos.

Quando a lama secou, o marido de Ava já se achou no direito de sair por aí, fazer negócios, dizia. Não sei explicar o porquê de tantos bichos aparecerem no galpão depois que a lama se transformou naquele pó vermelho. Pulgas, bichos de pé, ratos e até cobras apareceram, talvez à caça dos roedores. A fonte que se formara acima do galpão logo secou e a geringonça que o marido de Ava tinha feito para se coletar água, de nada adiantou quando as chuvas pararam. Assim, dependíamos das águas ainda lamacentas do rio. Afundando os pés no barro eu retirava baldadas de água para o consumo e limpeza.

—Será que ainda achas algumas batatinhas na roça pra fazer uma sopa? — perguntou Ava. A farinha de milho pro pão está terminando, só tem mais pra engrossar a sopa. E ele que não vem. A nenê está ficando fraca, parece febril e faz dois dias que está com diarreia. O que vou fazer? E chorava. Sei que não tens experiência na ordenha, mas ele consegue tirar três litros de leite. O litro que tiras não está dando. Choravam os pequenos e chorava a mãe, só eu não conseguia chorar tamanha a raiva que sentia do marido de Ava. A fome e as condições de higiene foram piorando.

O contato com a família de Ava se dava por um atalho na mata, do outro lado do rio, mas com a enchente, aquilo se tornou inviável. Restava a comunicação aos gritos com as águas entre nós, mas raras vezes aparecia alguém no barranco oposto.

—Ava, posso chamar algum vizinho? Eles podem ajudar. Mas ela alegava que eles não precisavam saber da nossa miséria, iam ficar falando, mas tinha um pressentimento que ele viria naquele dia.

No quarto, sob a luz do lampião que vigiava a doentinha, nos olhamos, que barulho era aquele? Na escuridão tudo assustava. Mais um ruído, e a porta se abriu. Era o marido de Ava. Largou alguns pacotes sobre a mesa e foi até o quarto. Arrastei meu colchão até a cozinha onde dormia quando o marido estava em casa.

– Olha tua filha, não passa de um dia se a gente não levar pro hospital.

– Vou levar agora – disse ele – num tom resoluto.

– Como vais com ela estrada afora, nem o foque tem pilha.

– Eu trouxe pilhas.

Ava trocou a roupinha da nenê e colocou outras numa mala de garupa. Deu um beijo na criança que nem pra chorar tinha mais forças.

– A mãe vai te encontrar, já forte e linda – disse. — Cuida bem dela, pai.

E da porta, no escuro da noite, acompanhamos o sobe e desce da luz da lanterna, pela várzea, subindo o morro, até desaparecer na curva atrás das capoeiras.
Naquela noite, mal pregamos o olho, a todo momento Ava me chamava.

– Onde será que ele já está, será que conseguiu um carro pra levar, será que já está no hospital? Agora ela já deve estar melhorando, o médico já deve ter visto ela.

Procurou o rosário numa caixa na prateleira da parede e pôs-se a rezar. Rezou e rezou. No segundo dia ouvi um chamado do outro lado do rio. O irmão avisava que aguardavam Ava e as crianças na casa dos pais. O marido de Ava traria a nenê até lá no outro dia. Começamos os preparativos para sair bem cedo no dia seguinte, domingo. – Estou pensando se não seria melhor deixar a nenê na casa da mãe até ficar bem forte – disse Ava. – Logo o rio baixa e posso ir vê-la todos os dias.

No domingo, quando o primeiro galo cantou, começamos a rolar na cama. Ao clarear, cuidamos da criação. Ava acordou as crianças.

– Vamos levantar, vamos encontrar a nenê lá na casa da vovó. Vocês não estão com saudades dela?

Havia alegria e esperança nos olhos de Ava. Eu não conseguia me alegrar tanto quanto ela. Olhava aquela figura digna de pena. De pés descalços, ora afundávamos na lama, ora tropeçávamos nos pedregulhos cortantes ao longo da estrada. A maior parte do caminho era pelo meio da mata virgem e, àquela hora ainda não havia o canto alegre dos pássaros. Apenas alguns emitiam seus sons tétricos. Ava fazia planos para os dias que ela iria à casa da mãe ver a nenê. Eu, com medo de trair meus pensamentos, quase nada dizia. Não queria tirar-lhe as esperanças. Caminhamos por três quilômetros até chegarmos à travessia do Rio Macaco.

O rio ainda estava intransponível e oferecia perigo na travessia, mesmo para canoístas habilidosos. A distância era grande, mas era a única possibilidade. O irmão de Ava já nos esperava do outro lado com seu Pedro e o filho mais velho, experientes em águas bravias. À espera da chegada da canoa, Ava tentava lavar a lama já seca dos pés, mas estes afundavam novamente no barro junto do rio. A malinha jogada sobre o pedregulho mais distante, com a menina de três anos no colo. A figura de Ava era digna da pequena babá de Hariton Platonov. O cabelo úmido da serração e escorrido, grampinhos de cada lado segurando o cabelo loiro e liso. As mãos, que tinham sido macias e delicadas, agora exibiam unhas sem aparar e encardidas. Seu melhor vestido, que já tivera fundo branco a exibir florzinhas miúdas, agora encardido, mal se distinguindo as flores. Na frente, os joelhos roliços à mostra e atrás, o vestido cobria a metade da barriga da perna. O caimento do vestido era mais devido às sobras de cada gravidez do que da incompetência da costureira.

Ribeirinhos se juntaram ao longo do barranco para ver aquela travessia, sabe, saciar aquela curiosidade sádica. Depois de duas travessias e muitas peripécias, estávamos prontos para seguir o caminho. Ava nada perguntou ao irmão e este nada disse. O caminho continuava no meio da mata, das árvores pingavam gotas que molhavam a estrada. Depois de dois quilômetros, o sol finalmente nos saudou, assim como os moradores que vinham ver nossa passagem. Olhavam para aquela mãe com um olhar compungente. Ava fez o resto do caminho em silêncio.

Na ladeira diante da casa, a mãe de Ava a aguardava, passou o braço sobre o ombro da filha, e as duas se abraçaram. Vendo uma pequena multidão se aglomerando diante da porta, Ava desprendeu-se dos braços da mãe e correu. As pessoas abriram caminho para a mãe. Na sala, um círculo de conhecidos sentados. No centro, sobre uma arca de madeira, o caixãozinho branco. Ava ajoelhou-se e expôs sua alma no choro incontido. Quando pôs as mãos em oração e olhou para o alto, Ava encontrou ele — ao lado do caixãozinho, soluçando. Ergueu-se num impulso, secou as lágrimas nas mangas do vestido e agarrou o marido sacudindo-o.

— Não chore agora por esta. Chore pelos outros. E as lágrimas de Ava secaram.

***

Maurícia Mees nasceu em Itapiranga, SC, onde viveu sua infância na propriedade rural da família, onde já criava suas novelas imaginárias. Já adulta mudou-se para Porto Alegre, RS, onde cursou Letras e especialização em Língua Portuguesa e Inglesa. Possui o título de Mestre no Ensino de Línguas Estrangeiras. Foi professora durante 30 anos e hoje é aposentada. O mar é sua maior inspiração para escrever textos com conteúdo social e de louvação à natureza. Em 2013, lançou A forma da realidade, em 2015, A casa do rochedo, ambas narrativas longas. Em 2016, participou da Antologia de contos Metamorfose, inspirados na obra de Kafka. Em 2018, participou da antolologia Pra ver a banda passar - contando coisas de amor, contos estes inspirados em letras de música do poeta social e do feminino, Chico Buarque.

 

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